quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Da indevida incidência do ISSQN sobre o Contrato de Franquia



O artigo 156, inciso III, da Constituição Federal estabelece a competência dos Municípios para instituir o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, cabendo à lei complementar definir quais os serviços abrangidos pela sua incidência.
Importante frisar que com base no texto constitucional o imposto municipal somente poderia incidir sobre serviços.
 
Nos termos doartigo 1º, da Lei Complementar nº 116/2003, o critério material da hipótese de incidência do ISSQN é a prestação de serviços constantes de sua lista anexa.
 
E a Franquia (franchising) está elencada no item 17.08 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003.
 
Assim, a referida lei traz a franquia como sendo um serviço sujeito à incidência do ISSQN.
Contudo, a franquia não se enquadra na materialidade do imposto municipal, tendo em vista não se tratar de uma prestação de serviço.
 
A Lei nº 8.955/1994 ao disciplinar os contratos de franquia define em seu artigo 2ºque:

"Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício."
 
A referida lei em seu artigo 3º, incisos VII e VIII, estabelece que na oferta de franquia devam estar especificados todos os valores envolvidos, quais sejam: o valor total do investimento necessário à aquisição, implantação e entrada em operação de franquia, o valor da taxa inicial de filiação ou taxa de franquia, o valor estimado das instalações, equipamentos e do estoque inicial, a remuneração periódica pelo uso do sistema, da marca ou em troca dos serviços efetivamente prestados pelo franqueador ao franqueado (royalties), o aluguel de equipamentos ou ponto comercial, a taxa de publicidade ou semelhante, o seguro mínimo e outros valores devidos ao franqueador ou a terceiros que a ele sejam ligados.
 
Analisando a legislação pode-se afirmar que o contrato de franquia é um contrato misto que envolve diversas obrigações, tendo como objeto principal a cessão do direito de uso da marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços, sendo que as demais obrigações instituídas estão intrinsecamente vinculadas à obrigação principal, pois são obrigações complementares para obtenção do uso exclusivo e em conformidade com a marca.
 
Note-se que a franquia empresarial envolve sim serviços, como é o caso, por exemplo, da publicidade, mas certo é que na hipótese não há prestação de serviço do franqueador para o franqueado. Na realidade, o franqueador utiliza os valores recebidos a esse título para pagamento das empresas prestadoras de serviços de publicidade da marca, serviços estes devidamente tributados pela empresa prestadora.
 
Assim, considerando ser o objeto principal do contrato de franquia a cessão do direito de uso da marca ou patente, não é devida a incidência do ISSQN sobre tais contratos, por não se tratar de uma prestação de serviço.
 
A prestação de serviço é aquela em que a empresa prestadora é contratada para desenvolver a atividade, com esforço humano, para o tomador que tem a obrigação de remunerá-la pelo serviço prestado, restando caracterizada uma obrigação de fazer.
 
O contrato de franquia, apesar de muitas vezes envolver obrigações de fazer, estas tidas por acessórias, não se sobressaem sobre o objeto principal do contrato, que é a cessão do direito de uso da marca.
Tal afirmativa se confirma pelo fato de que não há contrato de franquia sem a cessão de direito de uso da marca, pois esta é a sua característica essencial que o distingue dos demais contratos.
 
Nesse sentido são os ditames contidos no artigo conjunto de Alessandro Mendes Cardoso e Rafael Santiago Costa, conforme se verifica:
 
"Parece não haver dúvidas de que as obrigações decorrentes de um contrato de franquia vão muito além da "conduta humana consistente em desenvolver um esforço em favor de terceiro, visando a adimplir uma obrigação de fazer". Ainda que sejam inerentes à franquia determinados esforços humanos, tais como a prestação de consultorias eventuais e a concessão de treinamentos, esses não são os objetivos principais visados pelas partes. A utilização da marca e know how do franqueador pelo franqueado se sobressaem sobre aquelas atividades.
 
Tanto que a primeira característica constante do conceito legal do contrato de franquia é apresentada da seguinte forma "é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso da marca ou patente" (art. 2º da Lei nº 8.955/1994).
 
A complexidade do contrato de franchising é inconteste, não sendo possível ao legislador se ater a certas atividades a ele inerentes (de importância muitas vezes secundária) para justificar a incidência dos ISS, sob pena de desconfiguração do conceito de serviço e da própria natureza da franquia."
 
Quando o franqueador se obriga a ceder o direito do uso da marca ao franqueado, não se vislumbra uma obrigação de fazer, mas sim uma obrigação de dar um bem imaterial.
 
Portanto, evidente que a relação jurídica existente entre o franqueador e franqueado não é de prestação de serviço.
 
Traçando um paralelo, Hugo de Brito Machado, ao discorrer sobre a cessão do direito de uso, assim leciona:
"Não importa que a locação de bens móveis seja diferente da cessão do direito de uso de qualquer bem, material ou imaterial. O que importa é que em qualquer desses negócios jurídicos não se vislumbra um fazer, mas um dar. Nenhum deles, portanto, consubstancia serviço. Nenhuma dessas atividades pode estar sujeita ao ISS."
 
Assim, a cessão do direito de uso da marca não se confunde com a atividade de prestar serviços, que se qualifica pela atuação do prestador em favor do tomador, objetivando especificamente o desenvolvimento de uma atividade certa para o contratante (obrigação de fazer).
 
Como a referida lei lista a franquia como um serviço sujeito a incidência do ISSQN, os Municípios tem previsto a tributação dos valores decorrentes de tais contratos pelo imposto municipal.
Ocorre que a Lei Complementar nº 116/2003, ao elencar no item 17.08 de sua Lista de Serviços a Franquia, é flagrantemente inconstitucional, por afrontar o disposto no artigo 156, inciso III, da Constituição Federal, que limita a incidência do imposto municipal sobre serviços.
As demais, a lei ofende o artigo 110 do Código Tributário Nacional que veda a alteração da definição, do conteúdo e do alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, mencionados no texto constitucional.
 
À Lei Complementar competiria, tão somente, definir quais os serviços sujeitos ao ISSQN, com observância à materialidade do imposto, não podendo elencar obrigações que não se caracterizam como uma efetiva prestação de serviços.
 
Corroborando com o entendimento externado acima cumpre transcrever abaixo ementas de julgados proferidos pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que restou assentado nos votos que a franquia é um contrato de natureza complexa, fundamentalmente uma cessão de direito de uso de marca, não se subsumindo ao conceito constitucional de serviços tributáveis pelo ISSQN:
 
"Ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária. Apesar de constar da lista anexa à Lei Complementar nº 116/03 (itens 10.04 e 17.08), o contrato de franquia (franchising) não está sujeito à incidência de ISSQN. Incidente de inconstitucionalidade julgado pelo Órgão Especial deste Tribunal de Justiça. Reforma da sentença de improcedência. Dá-se provimento ao recurso." (18ª Câmara de Direito Pública, Relatora: Des. Beatriz Braga, Apelação nº 0126361-25.2008.8.26.0053, data do julgamento: 29/08/2013)
"AÇÃO ORDINÁRIA - ISS - Exercício de 2004 - Município de São Paulo - Franquia - Tributação com base no item 17.08 da lista trazida pela LC nº 116/03 - Descabimento - Atividade que não envolve efetiva prestação de serviços - Afronta ao artigo 156 III da CF - Inconstitucionalidade vislumbrada - Aplicação da Súmula Vinculante nº 10 do STF e do artigo 657 do anterior. Regimento Interno desta E. Corte - Julgamento suspenso, com a remessa dos autos ao C. Órgão Especial para análise da questão, o qual já declarou essa inconstitucionalidade - Prevalência do entendimento da d. Turma Julgadora - Procedência do pleito inicial nesta instância, com a inversão do ônus da sucumbência - Sentença reformada - Apelo provido." (15ª Câmara de Direito Público, Relator: Des. Silva Russo, Apelação nº 0069688-45.2006.8.26.0000, data do julgamento: 20/09/2012)
 
Assim, resta evidente a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 116/2003ao trazer em seu item 17.08 de sua anexa Lista de Serviço a Franquia como sendo um "serviço" sujeito a incidência do ISSQN, ofendendo flagrantemente o artigo 156, inciso III, da Constituição Federal.
Importante destacar que por se tratar de matéria constitucional cabe ao Egrégio Supremo Tribunal Federal reconhecer e declarar a alegada inconstitucionalidade, o que será apreciado pelo órgão com o julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136/RJ, em que foi reconhecida a Repercussão Geral.

Rafaela Sabino Caliman Wild
Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).
Fonte: FISCOSOFT